O pesquisador Bruno Z. Kotvisky revisou a literatura nacional e internacional sobre personalismo político de modo a entender qual é a definição conceitual utilizada. A análise levou à elaboração de um esquema conceitual que simplifique e condense a definição em um conceito menos esgarçado, mas com uma tipologia que abarque a complexidade do fenômeno.
O problema central do trabalho é a dificuldade em definir e delimitar o conceito de personalismo político. Há uma enorme fragmentação de sentido na literatura especializada. Essa imprecisão conceitual dificulta o emprego dessa ideia em estudos empíricos. Com isso em vista, procuramos: a) esclarecer os diferentes usos da noção de “personalismo político”; e b) construir um esquema analítico a partir da elaboração de esquema conceitual que sintetize as diferentes dimensões do fenômeno.
Para o modelo clássico de entendimento de conceitos (ADCOCK, 2005), de foco cognitivo (em oposição a um foco linguístico), conceitos seriam representações mentais das categorias do mundo. Tal abordagem encontra suas limitações, pois o foco cognitivo limita o entendimento do conceito ao indivíduo, enquanto um foco linguístico leva em conta o nível coletivo de entendimento de um conceito. Isso se torna relevante quando estamos falando de um enquadramento “ideal-científico”, onde cientistas possam testar as afirmações de seus pares, o que faz necessário um arcabouço conceitual intersubjetivo. A ampliação do uso de conceitos em escalas maiores sem o devido cuidado metodológico pode levar à perda de seu potencial explicativo, um “esgarçamento conceitual” (SARTORI, 1970). Além disso, nas ciências sociais, uma análise puramente semântica de conceitos, palavras e suas definições nunca seria adequada, necessitando definir as variáveis causais e seus mecanismos relacionados. Para sanar isso, podemos usar uma abordagem conceitual multinível e multidimensional, de cima para baixo, onde no topo se encontra um conceito base, chave para explicação, e na base os componentes quantitativos de dados e indicadores (GOERTZ, 2020).
Para o estudo do conceito de personalismo político, nossa metodologia foi dividida em duas etapas:
1. Revisão de escopo da literatura: foram analisados artigos nacionais e internacionais de áreas como Ciência Política, Psicologia Política e Ciências Sociais, buscando identificar os diferentes conceitos de personalismo político, personalização da política e voto pessoal. As bases de dados consultadas foram Web of Science, Scopus, SciELO Brasil e Google Scholar.
2. Construção de um esquema conceitual inspirado na abordagem de Gary Goertz (Social Science Concepts and Measurement, 2020). Esse modelo se estrutura em três níveis: básico (o conceito central), secundário (as manifestações e atributos do conceito) e de dados-indicadores (dados empíricos para medir o conceito).
Ao analisar os artigos sobre personalização da política, nota-se uma tentativa inicial de delimitar o objeto de estudo, principalmente no esforço de Rahat e Sheafer (2007), com sua tipologia e consequente estudo empírico do caso de Israel ao longo de cinco décadas. Karvonen (2010) parte de uma conceituação robusta antes de abordar a literatura de países parlamentaristas. Sua pesquisa encontra resultados mistos, com achados apontando tanto um aumento como uma diminuição da personalização, a depender do país analisado e do âmbito (midiático, legislativo, partidário, etc.). Adam e Maier (2016) jogam luz sobre a pluralidade de conceituações diferentes e apontam suas consequências negativas para a empiria. Além disso, questionam a normatividade com que trabalhos precedentes tratam do tema e por isso acabam iniciando suas pesquisas com base em premissas negativas. Balmas et al. (2016) buscam analisar a personalização sob um outro prisma através de sua tipologia de centralização e descentralização, o que soma às classificações anteriores.
Nos principais trabalhos sobre voto pessoal (CAIN et al., 1987; CAREY & SHUGART, 1995), as abordagem fazem referência ao aspecto comportamental do personalismo, principalmente das elites políticas e de como angariam apoio eleitoral através de suas reputações, tanto política como extra-política, e de seu papel como representante do eleitorado de seu distrito dentro da máquina estatal. O conceito de voto pessoal (ou personalista) sofre de certo esgarçamento, como fica evidente pela diferença de definições entre os dois trabalhos aqui analisados, e pela revisão de literatura feita por Avelino et al. (2020).
Ao analisar os textos de personalismo político, podemos fazer alguns apontamentos. Os textos brasileiros encontrados fazem muito referência ao comportamento eleitoral quando falam de personalismo (CARREIRÃO, 2000; BORBA, 2005). No que tange a literatura internacional, nota-se uma tendência mais antiga, bastante normativa, que trata o personalismo como traço negativo, muito característicos de países da onda tardia de democratização, e que algumas vezes aparece em democracias mais estabelecidas como exceções à regra, um pequeno parênteses em sua tradição democrática (KOSTADINOVA & LEVITT, 2014). Ainda que se note que essa linha de pensamento ainda apareça em estudos mais recentes, percebe-se uma tendência contrária, que pretende estudar o personalismo como uma característica que esteve sempre presente nos sistemas políticos, e que deve ser estudada em conjunto com o partidarismo (PRUYSERS et al, 2018).
Na segunda etapa metodológica, discutimos os resultados da revisão de escopo de modo a construir um esquema conceitual de personalismo político. A tipologia inicial de personalização elaborada por Rahat e Sheafer (2007) é usada como referencial para muitos outros trabalhos desde então, e tem a qualidade de abordar o fenômeno a partir de suas múltiplas faces. A partir do conceito base de personalização, temos três tipos no nível secundário do esquema conceitual: institucional, midiático e comportamental. Em trabalho mais recente, Rahat e Kenig (2018) atualizam o modelo, modificando seus subtipos. Segundo nossa avaliação, o esquema conceitual de Rahat e Kenig (2018) pode ser utilizado para descrever tanto um processo (personalização) como uma característica comparável entre sistemas (personalismo). É com base nele e no modelo conceitual de Goertz que elaboramos o esquema conceitual de personalismo político.O conceito de base é o personalismo político, fenômeno amplo, com diferentes manifestações na esfera política. Os conceitos secundários apresentam dois níveis de especificação, ou seja, conforme descemos a escala, estamos observando um fenômeno cada vez mais específico e limitado.
Nossa pesquisa revela a necessidade de se analisar o personalismo para além de uma perspectiva meramente negativa. A relevância política de atores individuais não se manifesta apenas em regimes autoritários ou em sistemas políticos subdesenvolvidos. O personalismo está presente em diferentes contextos políticos, concentrando-se em figuras de liderança (personalismo centralizado) ou em diversos atores individuais atomizados (personalismo descentralizado) (Balmas et al. (2016).
Como o objetivo deste trabalho era somente revisar a literatura para então elaborar um esquema conceitual mais claro, os próximos passos devem ser mais empíricos. A abordagem ontológica-semântica de construção de conceitos de Goertz denota a importância de uma base conceitual prévia aos estudos mais casuísticos de mensuração caso-a-caso, e acreditamos que nosso trabalho tenha alcançado o objetivo de construí-la. Trabalhos futuros deveriam focar no terceiro nível da conceituação, o nível de dados-indicadores, e assim captar em que medida o personalismo político está presente nos sistemas políticos em questão. Tais trabalhos são raros, principalmente no âmbito nacional, o que mostra o quanto este campo de estudo pode ser promissor para o desenvolvimento da Ciência Política e sua compreensão da realidade.
REFERÊNCIAS
ADAM, S. & MAIER, M. (2010) Personalization of Politics A Critical Review and Agenda for Research, Annals of the International Communication Association, 34:1, 213-257, DOI: 10.1080/23808985.2010.11679101
ADCOCK, R. (2005). What is a concept? Working Paper. Political Concepts. Committee on Concepts, and Methods – Working Papers Series. Disponível em:<https://www.concepts-methods.org/Files/WorkingPaper/PC%201%20Adcock.pdf
>. Acesso em: 15.mar.2024.
AVELINO, G., IZUMI, M., & RUSSO, G. A. (2020). Conceptualizing the Personal Vote.
BALMAS, M. RAHAT, G. SHEAFER, T. & SHENHAV, S. (2014) Two routes to personalized politics: Centralized and decentralized personalization. Party Politics 2014, Vol 20(1) 37–51. DOI: 10.1177/1354068811436037
BORBA, J.. Cultura política, ideologia e comportamento eleitoral: alguns apontamentos teóricos sobre o caso brasileiro. Opinião Pública, v. 11, n. 1, p. 147–168, mar. 2005.
CAIN, B. FEREJOHN, J. & FIORINA, M. (1987). The personal vote: Constituency service and electoral independence. Harvard University Press.
CAREY, J. M. & SHUGART, M. S. (1995) Incentives to Cultivate a Personal Vote: a Rank Ordering of Electoral Formulas. Electoral Studies, Vol. 14, No. 4, pp. 417-439
CARREIRÃO, Y. de S. A decisão do voto nas eleições presidenciais no Brasil (1989 a 1998): a importância do voto por avaliação de desempenho. Tese de doutorado em Ciência Política, USP, São Paulo, 2000.
GOERTZ, G. (2020). Social Science Concepts and Measurement: New and Completely Revised Edition. [s.l.] Princeton University Press.
KARVONEN, L. (2010). The Personalisation of Politics: a study of parliamentary democracies. ECPR Press.
KOSTADINOVA, T., LEVITT, B.. “Toward a Theory of Personalist Parties: Concept Formation and Theory Building.” Politics and Policy 42, no. 4 (2014): 490–512.
PRUYSERS, S., CROSS, W.P., Katz, R.S. (2018) ‘Personalism, personalization and party politics’, in Cross, W.P., Katz, R.S. and Pruysers, S. (eds.) The personalization of democratic politics and the challenge for political parties. London: ECPR Press, p1–18.
RAHAT, G., KENIG, O. (2018). From party politics to personalized politics? Party change and political personalization in democracies. Oxford: Oxford University Press.
RAHAT, G., SHEAFER, T. (2007) The Personalization(s) of Politics: Israel, 1949–2003, Political Communication, 24:1, 65-80
SARTORI, G. (1970). Concept misformation in comparative politics. American political science review, 64(4), 1033–1053.
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