Uma análise de 69 boatos verificados e desmentidos pelo Projeto Comprova
A circulação de boatos durante as eleições presidenciais brasileiras de 2018 teve como uma de suas características centrais a incidência de mitos políticos diversos. De modo especial, destacou-se a presença de desinformação associada a ideias conspiratórias.
Este comentário analisa, em um conjunto de 69 boatos verificados e desmentidos pelo Projeto Comprova durante a campanha eleitoral de 2018, a presença de mito político da categoria Complô, uma das quatro definidas por Girardet (1887) – a saber, as demais são Salvador, Era de Ouro e Unidade. É empregada, na análise, a metodologia de análise de conteúdo do tipo categorial temática (BARDIN, 1977), com abordagem qualiquantitativa. Há três etapas na pesquisa: análise do corpus a partir da categoria Complô, extraída de Girardet (1987), extração da unidade temática prevalente em cada boato e análise do contexto de menção a partidos e/ou agentes políticos nos boatos.
Girardet (1987) descreve a mitologia política como uma manifestação de imaginário com caráter explicativo que promove um reordenamento psíquico assentado em emoções de modo a sugestionar um mundo compreensível e claro. De modo mais exato, ele identifica quatro categorias principais de mitos políticos: Complô, que se constitui de teorias conspiratórias; Salvador, formado por narrativas de teor messiânico e heróico; Era de Ouro, baseado em discursos de viés nostálgico e reacionário; e Unidade, que reúne relatos centrados na ideia de união, pacificação e homogeneidade.
O mito de nosso maior interesse, qual seja o do Complô, propaga narrativas conspiracionistas que descrevem como organizações secretas, que atuam de modo análogo a seitas, conjuram sigilosamente em planos de tomada de poder e estabelecimento de um regime político e social hegemônico (GIRARDET, 1987, pp. 34-36). Exemplos históricos de mitos dessa natureza são o jesuítico e o maçônico.
Avançando à pesquisa empírica, apresentamos, inicialmente, a categorização feita para a primeira fase da análise, qual seja identificar a presença de mito político do Complô (GIRARDET, 1987) nos boatos. A categorização contempla quatro subcategorias, divididas nos grupos código e significação, conforme mostra o quadro abaixo.
Quadro 1 – Categoria de análise do mito político do Complô baseadas em Girardet (1987)
No que tange aos resultados, identificamos que a manifestação da mitologia de Complô teve 26 casos com incidência de três categorias, 43 casos com incidência de quatro categorias. De maneira mais específica, houve, nesse conjunto de boatos, prevalência da subcategoria Significado 1.3 (S1.3) (discurso narrativo de denúncia e/ou contracomplô), com 69 casos; sucedida pelas categorias Código 1 (C1) (palavras que designam conspiração ou ideias análogas) e Significado 1.1 (S1.1) (descrição de e/ou alusão a plano conspiratório/ameaçador em contexto político, social ou moral real), com 68 casos cada. Por fim, a subcategoria Significado 1.2 (S1.2) (descrição de e/ou alusão a organização secreta ou pouco conhecida) teve a menor incidência, com 45 casos.
Os boatos assentados sobre a mitologia do Complô foram classificados, do ponto de vista temático, em dois grupos principais: os que versavam sobre uma conspiração propriamente dita, com conluio envolvendo pessoas e/ou instituições para alcançar um objetivo oculto (Grupo 1) e os que descreviam um projeto e/ou plano pouco ou nada conhecido, sem necessariamente configurar uma trama plena e integralmente conspiratória (Grupo 2). O primeiro tipo foi dominante, com frequência de 51 casos (correspondentes a 73,91% da categoria). O segundo se manifestou em 18 casos (26,09%).
De forma mais específica, identificamos a presença de 13 temas diferentes no conjunto dos 69 boatos assentados sobre a mitologia do Complô, nesta ordem: complô para fraude de eleições/urnas eletrônicas (Tema 1; 17 casos, correspondentes a 24,63% da categoria); projeto e/ou plano pouco e/ou nada conhecido de PT/Fernando Haddad (Tema 2; 16 casos; 23,19%); complô relativo ao ataque e/ou novo ataque a Jair Bolsonaro (Tema 3; 9 casos; 13,04%); complô para prejudicar campanha de Jair Bolsonaro (Tema 4; 8 casos; 11,59%); complô de governos de Lula/PT para prática de corrupção (Tema 5; 5 casos; 7,25%); complô para crime eleitoral do PT (Tema 6; 3 casos; 5,79%); complô para fraude de pesquisas eleitorais (Tema 7; 3 casos; 4,34%); complô político internacional (Tema 8; 3 casos; 4,34%); plano/projeto de governo secreto/pouco conhecido de Jair Bolsonaro ou General Mourão (Tema 9; 3 casos; 4,34%); complô para crime eleitoral de Jair Bolsonaro (Tema 10; 2 casos; 2,89%); plano/projeto de governo secreto/pouco conhecido de Ciro Gomes (Tema 11; 2 casos; 2,89%); complô para acobertar crime ambiental de marido de Marina Silva (Tema 12; 1 caso; 1,44%); e denúncia de complô para prender Lula (Tema 13; 1 caso; 1,44%).
Classificamos, então, os 69 boatos no que diz respeito ao partido e/ou agente político explicitamente citado(s). A análise aponta que 59 boatos (correspondentes a 85,51% da categoria) contêm menções desse tipo, face a 10 boatos que não fazem tais citações (14,49%). Os dados mostram que apenas o conjunto PSL/Jair Bolsonaro/General Mourão teve menções a si em contexto favorável e/ou benéfico. Isso ocorreu em 20 dos 27 boatos que os citam. No caso de todos os demais partidos e/ou agentes políticos – PT/Fernando Haddad/Luiz Inácio Lula da Silva, Ciro Gomes, Marina Silva e João Amoêdo – as menções ocorrem exclusivamente em contexto desfavorável e/ou prejudicial.
Por fim, analisamos, de modo mais detalhado e a fim de exemplificação, um boato dessa categoria, cujo título do relatório de checagem é “É boato que urnas tenham sido apreendidas no Amazonas já preenchidas com votos para Haddad” e cuja reprodução está abaixo, a partir de uma mensagem postada no Site de Rede Social (SRS) Twitter.
Figura 1 – Reprodução integral de boato classificado da categoria Complô
Classificamos a peça no Grupo 1 (boatos que versam sobre uma conspiração propriamente dita, com conluio envolvendo pessoas e/ou instituições para alcançar um objetivo oculto) dado que a mensagem alude a um episódio concreto de fraude em urnas eletrônicas. De modo detalhado: atribui a prisão à Polícia Federal, por meio da sigla “PF”; referencia o conteúdo como tendo sido publicado em uma emissora de televisão, “Record”; afirma que o candidato beneficiado pela suposta fraude é Fernando Haddad, do PT, ao mesmo em que afirma se tratar de “um golpe” contra Bolsonaro; e motiva o receptor a compartilhar a mensagem, adotando tom mobilizador.
Diante disso e a título de síntese, chegamos a três conclusões principais: o conjunto de boatos que, efetivamente, consistem em teorias conspiratórias foi prevalente, correspondendo a três de cada quatro casos; o tema dominante nos boatos assentados sobre a mitologia do Complô foi a fraude eleitoral, que corresponde a cerca de 25% dos boatos da categoria; e a menção explícita a partidos e/ou políticos ocorreu em contexto favorável à candidatura de Jair Bolsonaro, único a ter menções a si em circunstância que potencialmente benéficas – em torno de três em cada quatro boatos que o citavam tinham tal característica.
Referências
Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70.
Giradet, R. (1987). Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras.