Segundo dados do LAPOP, cerca de 71% dos brasileiros apoiam o aborto para salvar a vida da gestante

Rafaela M. Sinderski e Naiara S. de Almeida Alcântara

Este texto apresenta uma breve discussão sobre a aceitação do aborto no Brasil. Para isso, utilizamos como material empírico o Survey de 2019 do Projeto de Opinião Pública da América Latina (LAPOP) com o objetivo de compreender em que medida os brasileiros concordam com a prática quando a vida da gestante é posta em risco.

É pertinente lançar olhares sobre a questão, em especial agora, momento em que ganhou projeção a luta para garantir o direito de abortar de uma menina de 10 anos, que engravidou após ser repetidamente violada pelo tio[1]. Apesar de o aborto ser permitido pelo Artigo 128 do Código Penal brasileiro[2] diante de estupro e de risco à vida da gestante, o nome da criança e o endereço do hospital onde estava internada foram divulgados em sites de redes sociais[3], ato que possibilitou a reunião de grupos conservadores, protestando contra a prática diante do local onde se realizaria o procedimento médico. A militante bolsonarista Sara Winter, responsável pela exposição da vítima[4], pode responder pela violação do Artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)[5], que garante a preservação da identidade da criança, e pela transgressão do Artigo 286 do Código Penal[6], que proíbe a incitação pública de crimes.

A questão é que discutir sobre aborto não envolve apenas o peso da proibição ou da permissão legal, mas também uma soma de questões morais, religiosas, relacionadas à desigualdade social e à busca pela equidade de gênero (SCAVONE, 2008; KULCZYCKI, 2011). A região que cinge América Latina e Caribe[7] apresenta leis bastante restritivas quando se trata do aborto (YAM, DRIES-DAFFNER E GARCÍA, 2006; CRR, 2015). Porém, Diniz, Medeiros e Madeiro (2017) revelam que, apesar das restrições legislativas, a prática é comum entre as mulheres brasileiras: ao longo de 2016, quase uma em cada cinco realizou ao menos um aborto.

Mesmo com dados que mostram que abortar é uma realidade apesar da proibição, a conjuntura política brasileira tem apresentado um forte movimento em direção à repressão. Somente em 2019, entre os meses de fevereiro e setembro, 28 Projetos de Lei (PLs) apresentados na Câmara dos Deputados mencionavam a palavra “aborto” – para fins de comparação, o ano de 2018 apresentou 9. Desses, 43% pretendiam restringir os direitos à interrupção da gravidez[8]. Já no Senado Federal discute-se, desde 2015, a proibição do aborto legal e seguro por meio da chamada “PEC da Vida”[9].

Mas o que pensa a população brasileira sobre o aborto? Ao verificar os dados obtidos pelo LAPOP para a pergunta “O(A) sr./sra. acredita que se justifica a interrupção da gravidez, ou seja, um aborto, quando a saúde da mãe está em perigo?”, constatou-se que a maioria dos entrevistados (71%) que tinham alguma opinião sobre o tópico acreditava que sim, a prática é aceitável diante desse tipo de situação. Dos 29% que não concordam com o aborto nesses casos, 56,6% são mulheres. O gráfico 1 mostra a distribuição das respostas por posicionamento ideológico.

Gráfico 1 – Aprovação do aborto (em situações de risco à mãe) por posicionamento ideológico (%)

Fonte: LAPOP (2019).

Dos que responderam “sim”, 29,9% declaram estar à esquerda do espectro ideológico – esquerda ou centro-esquerda –, enquanto 36,68% afirmaram se posicionar à direita da escala – mais perto ou mais longe da extremidade.  Com esses dados, não é possível dizer que ser de direita está mais fortemente relacionado a aprovar o aborto em casos de risco à mulher. O fato é que, do total de entrevistados, a maioria (38,78%) se colocou mais próxima da direita. 27,63% se posicionou à esquerda, 26,10% ao centro e 7,47% não soube ou não quis responder.

Gráfico 2 – Aprovação do aborto (em situações de risco à mãe) por faixa etária (%)

Fonte: LAPOP (2019).

O gráfico 2 mostra os dados para a faixa etária: 53,92% dos entrevistados que disseram “sim” têm entre 26 e 50 anos. Curiosamente, a maioria dos mais jovens (com até 25 anos) disse “não” para a pergunta. Já o gráfico 3 revela que 91,32% dos que disseram “não” afirmam que a religião é algo importante em suas vidas. Mas a religião também se mostrou relevante em algum grau para 87,4% dos brasileiros que aprovam a prática.

Gráfico 3 – Aprovação do aborto (em situações de risco à mãe) considerando a importância da religião (%)

Fonte: LAPOP (2019).

Este texto, de caráter exploratório, apresentou algumas informações sobre a aceitação do aborto no Brasil. Mas esse é um tema que deve ser estudado mais a fundo a fim de entender, de fato, quão tolerante é a população brasileira a respeito da questão e quais são as variáveis que se conectam à dinâmica de tolerar a prática.

Ainda assim, em relação à ideologia, constatamos que a maioria dos respondentes encontram-se nos espectros políticos: 1- Centro e 2- Direita. Portanto, há maiores porcentagens de concordantes e discordantes em relação à variável dependente nesses grupos. Todavia, quando observamos os cinco espectros políticos, representados no gráfico 1, proporcionalmente, torna-se possível inferir que é entre o grupo mais à esquerda que o aborto, enquanto uma prática médica realizada com a finalidade de minimizar os riscos à vida da grávida, é mais facilmente aceito.


[1] Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-15/estuprada-desde-os-6-gravida-aos-10-anos-e-num-limbo-inexplicavel-a-espera-por-um-aborto-legal.html?rel=lom>. Acesso em 21 ago. 2020.

[2] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em 19 ago. 2020.

[3] Disponível em: <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/08/17/sara-giromini-estupro-vulneravel-prisao.htm>. Acesso em 19 ago. 2020.

[4] Disponível em: <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/08/17/sara-giromini-estupro-vulneravel-prisao.htm>. Acesso em 19 ago. 2020.

[5] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em 19 ago. 2020.

[6] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em 19 ago. 2020.

[7] Mais informações sobre a prática do aborto nos países da América Latina podem ser conferidas no mapa “The World’s Abortion Laws”, alimentado em tempo real pelo Center for Reproductive Rights. Disponível em: <https://reproductiverights.org/worldabortionlaws>. Acesso em 21 ago. 2020.

[8] Informações disponíveis em: <http://www.generonumero.media/projetos-de-lei-contrarios-ao-aborto-na-camara-dos-deputados-batem-recorde-em-2019/>. Acesso em 21 ago. 2020.

[9] Ver: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/120152>. Acesso em 21 ago. 2020.


Referências

CENTER FOR REPRODUCTIVE RIGHTS (CRR). The World’s Abortion Laws 2017, New York: CRR, 2017.

DINIZ, D.; MEDEIROS, M.; MADEIRO, A. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 2, p. 653-660, 2017.

KULCZYCKI, A. Abortion in Latin America: Changes in Practice, Growing Conflict, and Recent Policy Developments. Studies in Family Planning, v. 42, n. 3, p. 199-220, 2011.

SCAVONE, L. Políticas feministas do aborto. Estudos Feministas, v. 16, n. 2, p. 675-680, 2008.

YAM, E. A.; DRIES-DAFFNER, I.; GARCÍA, S. Abortion Opinion Research in Latin America and the Caribbean: A Review of the Literature. Studies in Family Planning, v. 37, n. 4, p. 225-240, 2006.