Uma exploração de dados de opinião pública sobre o suporte ao regime democrático e a situações antidemocráticas

Rafaela M. Sinderski e Dayane Saleh

Possíveis crises democráticas se tornaram tema recorrente em estudos recentes sobre política (LEVITSKY E ZIBLATT, 2018; RUNCIMAN, 2018; MOUNK, 2019; TOOZE, 2019). Pesquisadores têm se preocupado com as razões e evidências para uma “erosão sutil” – como definem Levitsky e Ziblatt (2018) – de democracias já consolidadas ao redor do mundo. Em contextos como o brasileiro, a falta de confiança dos cidadãos em instituições políticas figura entre os principais riscos para o regime democrático (BAQUERO, RANINCHESKI E CASTRO, 2018). Esse cenário de desconfiança tem dado espaço para grupos que clamam pelo retorno da ditadura militar[1] – que vigorou entre 1964 e 1985 – e inflamado o debate sobre a melhor forma de governo para o país.

Situações envolvendo o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) deram impulso a essa discussão sobre ditadura versus democracia em território brasileiro. A campanha e a decorrente eleição do político em outubro de 2018 reforçaram o conservadorismo e o saudosismo em relação ao regime militar. Em 2016, por exemplo, quando ainda era deputado federal pelo Rio de Janeiro, ele homenageou o ex-coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do DOI-Codi entre 1970 e 1974, durante a votação do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Ustra foi torturador de Rousseff na ditadura[2].

Ainda enquanto deputado, Bolsonaro negou o golpe militar de 1964 e exaltou o período com faixas e rojões de agradecimento aos militares da época. No plenário da Câmara, expressou seu saudosismo ao AI-5, louvando a imposição do Ato Institucional como uma medida de contenção do comunismo no Brasil[3].

Já no poder, em julho de 2019, Bolsonaro descredibilizou os arquivos oficiais sobre as mortes na ditadura, questionando, inclusive, a legitimidade da Comissão Nacional da Verdade[4], formada em novembro de 2011 com o intuito de investigar violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988[5]. Em agosto do mesmo ano, o chefe de Estado recebeu a viúva do coronel Ustra no Palácio do Planalto, referindo-se ao mesmo como “herói nacional”[6].

Considerando essa conjuntura, este texto verifica o grau de apoio da população brasileira em relação ao regime democrático e a disposição dos cidadãos em aceitar golpes militares diante de determinados cenários. Para a análise, foram considerados os dados de 2019 do Projeto de Opinião Pública da América Latina (LAPOP). O gráfico 1, logo abaixo, mostra os resultados para a pergunta “A democracia tem alguns problemas, mas é melhor do que qualquer outra forma de governo. Até que ponto concorda ou discorda desta frase?”.

Gráfico 1 – Opinião dos entrevistados sobre a democracia como melhor modelo de governo (%)

Fonte: LAPOP (2019).

A resposta dos entrevistados deveria ser dada em uma escala de 1 a 7, na qual 1 representa “discordo muito” e 7 é “concordo muito”. Para facilitar a leitura dos dados, os valores da escala foram agregados. Dessa forma, as respostas 1 e 2 passaram a corresponder a “forte discordância” em relação à frase. Os números 3, 4 e 5 foram reunidos sob a categoria “posicionamento moderado”, já a soma de 6 e 7 recebeu o nome de “forte concordância”. Vê-se que a maioria dos brasileiros entrevistados apresenta um posicionamento moderado diante da questão (48,66%).

Na escala (1-7), a maioria escolheu o número 5 (20,66%), seguido pelo valor mediano 4 (19,57%). 24,33% das pessoas concordou com a frase em seu máximo (7) e 7,54% o fez em seu mínimo (1).

Quando o assunto é apoio a possíveis regimes militares, cerca de um terço dos entrevistados apresenta uma opinião antidemocrática. Para o questionamento “Na sua opinião, se justificaria um golpe militar quando há muito crime?”, 37,32% dos que tinham algum posicionamento sobre o tópico disseram que sim (gráfico 2).

Gráfico 2 – Aceitação de um golpe militar considerando o problema da violência no país (%)

Fonte: LAPOP (2019).

Os valores para a pergunta “Na sua opinião, se justificaria um golpe militar diante de muita corrupção?” são similares. Como mostra o gráfico abaixo, 35,48% dos brasileiros apoiariam o fim da democracia considerando esse problema.

Gráfico 3 – Aceitação de um golpe militar considerando o problema da corrupção no país (%)

Fonte: LAPOP (2019).

Percebe-se que, apesar de uma grande parte dos entrevistados acreditar na democracia como melhor regime para o país (gráfico 1), uma parcela considerável dos brasileiros – que supera um terço dos que responderam à pesquisa – concorda com um golpe militar como “solução” para resolver determinados problemas que acometem o Brasil. O medo da violência gera maior aceitação de um regime ditatorial, mas o desejo de combater a corrupção também se tornou motivo para o posicionamento antidemocrático.


[1] Alguns atos antidemocráticos ganharam destaque nos meios de comunicação ao longo dos últimos anos, como a invasão da Câmara dos Deputados, em 2016, por um grupo pró-intervenção militar e a manifestação de apoiadores de Jair Bolsonaro em Brasília, pedindo pelo retorno da ditadura. Disponível em: <http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2016/11/grupo-invade-camara-dos-deputados-e-pede-intervencao-militar.html> e <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/06/apoiadores-de-bolsonaro-fazem-ato-pro-intervencao-e-opositores-usam-cruzes-para-criticar-governo.shtml>. Acesso em 4 set. 2020.

[2] Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-menciona-chefe-do-doi-codi-ao-votar-pelo-impeachment-2-19112343>. Acesso em 4 set. 2020.

[3] Disponível em: <https://veja.abril.com.br/politica/doze-vezes-em-que-bolsonaro-e-seus-filhos-exaltaram-e-acenaram-a-ditadura/>. Acesso em 4 set. 2020.

[4] Disponível em: <https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/07/30/bolsonaro-chama-de-balela-documentos-sobre-mortos-na-ditadura.ghtml>. Acesso em 4 set. 2020.

[5] Disponível em: <http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/institucional-acesso-informacao/a-cnv.html>. Acesso em 4 set. 2020.

[6] Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/08/bolsonaro-volta-a-chamar-ustra-de-heroi-nacional-e-recebe-viuva-no-planalto.shtml>. Acesso em 4 set. 2020.

Referências:

BAQUERO, M.; RANINCHESKI, S.; CASTRO, H. C. de O. A formação política do Brasil e o processo de democracia inercial. Revista Debates, v. 12, n. 1, p. 87-106, 2018.

LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

MOUNK, Y. O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

RUNCIMAN, D. Como a democracia chega ao fim. São Paulo: Todavia, 2018.

TOOZE, A. La democracia y sus descontentos. Nueva Sociedad, n. 282, p. 43-56, 2019.