Uma análise de 747 proposições legislativas apresentadas entre 2003 e 2018
Trabalhos mais recentes têm questionado a normatividade que envolve o conceito de transparência pública (WOOD, ARONCZYK, 2020; SCHUDSON, 2020; BIRCHALL, 2014). Birchall (2014) ressalta que a transparência é vista, muitas vezes, como um mecanismo invisível pelo qual as informações chegam até os cidadãos, não tendo uma qualidade particular em si mesma. Contudo, a autora reforça que os dados estão sempre sujeitos a narrativas e interpretações. Wood e Aronczyk (2020), por sua vez, afirmam que todo ato de transparência implica em uma redistribuição do poder comunicativo – que nem sempre ocorre de forma igualitária e democrática e que não está alheia a disputas políticas. Em outras palavras, a criação e a manutenção de ferramentas de transparência perpassam por interesses políticos e pessoais daqueles que exercem cargos de poder.
A própria institucionalização dessa dimensão democrática está atrelada a tais questões. A transparência confere capital cultural e moral àqueles que a promovem e a implementam (BIRCHALL, 2014), o que faz com que algumas leis se revelem window-dressing laws (MICHENER, 2011), ou seja, normas que pouco contribuem com a abertura governamental, favorecendo, somente, a imagem de representantes políticos. A literatura vem questionando, inclusive, o que leva atores políticos do mundo todo a empreendem reformas que os submetem a revelar informações que antes eram restritas a uma elite (BERLINER, 2012).
A fim de contribuir brevemente com essa discussão, são apresentados aqui resultados sobre 747 proposições legislativas apresentadas por Deputados Federais, entre 2003 e 2018, que revelam a quem esses representantes políticos demandam transparência em suas propostas de lei.
O Gráfico 1 mostra que, dentre as matérias analisadas, 429, o que corresponde a 57,4% do corpus, deixam claro qual é o poder, órgão e/ou nível da federação responsável pela transparência demandada.
Gráfico 1 – Menção aos responsáveis pelo cumprimento da transparência
Contudo, dentre essas 429 matérias, 28 responsabilizam a Câmara dos Deputados e somente uma especifica que os gabinetes parlamentares também são responsáveis pela promoção da transparência: o PRC 293/2017, proposto por Heuler Cruvinel (PSD), propõe:
[...] Art. 2º Todas as propostas, ideias e sugestões de proposição legislativa ou de tomada de decisão no âmbito do processo legislativo, bem como estudos, notas técnicas, pareceres e documentos similares relacionados a matéria legislativa que forem recebidos no gabinete parlamentar ou apresentados diretamente ao Deputado por eleitores, agentes de relações governamentais ou outros representantes de setores econômicos e sociais ou de órgãos ou entidades, públicos ou privados, deverão ser divulgados no Sistema de Acompanhamento e Informações do Mandato Parlamentar e nos demais sistemas e bancos de dados a que se refere o art. 17 do Código de Ética e Decoro Parlamentar. [...] Art. 3º O gabinete parlamentar disponibilizará, toda segunda-feira, para publicação no Sistema de Acompanhamento e Informações do Mandato Parlamentar e nos demais sistemas e bancos de dados a que se refere o art. 17 do Código de Ética e Decoro Parlamentar, a agenda de compromissos e reuniões do Deputado prevista para a semana. [...] [1]
Em contrapartida, há mais de 40 matérias demandando transparência ao Poder Executivo Federal. Os PLs 2820/2003 e 3975/2004, por exemplo, propõem a divulgação de dados sobre arrecadação tributária e licitações da Administração Pública Federal, respectivamente. Essas duas matérias foram propostas por partidos de oposição: a primeira é de autoria de Antonio Carlos Mendes Thame (PSDB) e a segunda de Carlos Nader (PFL, atual DEM).
Propor transparência para vigiar partidos concorrentes pode, portanto, ser uma variável relevante nesse processo. Essa breve ilustração corrobora a perspectiva de Berliner (2012), de que países com maior competição política são mais propensos a aprovar leis de acesso à informação.
[1] Ver em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2162926. Acesso em: 19 nov. 2021.
Referências:
BERLINER, D. Institutionalizing Transparency: The Global Spread of Freedom of Information in Law and Practice. 2012. 198 f. (Doutorado em Filosofia). University of Washington, 2012.
BIRCHALL, C. Radical transparency? Cultural Studies, Critical Methodologies, v. 14, n. 1, p. 77- 88, 2014.
MICHENER, G. FOI laws around the world. Journal of Democracy, v. 22, n. 2, p. 145-159, 2011.
SCHUDSON, M. The Shortcomings of Transparency for Democracy. American Behavioral Scientist, v. 64, n. 11, 2020.
WOOD, T.; ARONCZYK, M. Publicity and Transparency. American Behavioral Scientist, v. 64, n. 11, 2020.