Em 2023, o Brasil viu um crescimento em ataques escolares com tiros. Embora fatores como acesso a armas e saúde mental fossem discutidos, ignorou-se o papel dos imageboards, como o 1500chan, usado pela extrema direita. A pesquisa produzida por Daniel Kei Namise mostra como estes fóruns promovem aquisição de armas e ideologias radicais.
Em 9 de junho de 2023, um ex-aluno de 21 anos entrou em uma escola em Londrina, Paraná, alegando precisar de seu histórico escolar e iniciou um tiroteio, matando uma estudante de 16 anos. A crescente violência em escolas brasileiras desde 2022 é ligada ao acesso fácil a armas e à influência das redes sociais. O Ministro da Justiça, Flávio Dino, tomou medidas para aumentar a segurança escolar e cobrou ação de empresas como Meta e Twitter para monitorar perfis violentos. Contudo, a atenção deve ser voltada para imageboards, como o 1500chan, onde ocorrem discussões anônimas, incluindo promoção de ideologias extremistas e tópicos armamentistas. Este estudo analisa debates no 1500chan sobre posse de armas, coletando e analisando comentários manualmente. O foco é entender a influência dos imageboards na promoção de ideias extremistas e na violência escolar.
Os imageboards são plataformas de discussão que oferecem anonimato aos usuários e são caracterizados por seu design específico. Inspirados no Geocities e AOL dos anos 90, eles possuem seções divididas em subcategorias, cada uma com regras distintas (PEREIRA, 2014). O 4chan foi fundado em 2003 por Christian Poole, inicialmente focado em animes e mangás. No entanto, sua estrutura anônima fomentou a propagação de discursos e ideologias extremistas (BERNSTEIN et al., 2011; BOTÃO, SOUZA e RIBEIRO, 2019). Os imageboards possuem um “design alegal” que incentiva a transgressão social (LINDHAL, 2013; PRIMAVERA DE FILIPPI; MANNAN). O Futaba chan, precursor japonês do 4chan, ilustra essa transgressão, permitindo aos japoneses um espaço de expressão livre, uma vez que a sociedade japonesa desencoraja expressões individuais (GUSHIKEN e HIRATA, 2012).
O anonimato, junto à efemeridade das mensagens, aumenta a dificuldade em rastrear violações (PEREIRA, 2014). Isso se alinha com a cultura troll do 4chan, que, visando o “lulz”, busca chocar, transgredindo normas e valores (PHILLIPS, 2015). Esta cultura se tornou terreno fértil para a emergência da extrema direita, que em imageboards, banalizam o mal e justificam desumanização (NAGLE, 2017). Ao mesmo tempo, os usuários desses fóruns veem-se como vítimas das mudanças sociais, alimentando ideias conspiratórias e combate ao “politicamente correto” (NORRIS e INGLEHART, 2019; EMPOLI, 2020; COLEMAN, 2012; PHILLIPS, 2015).
Para compreender a circulação de publicações sobre armamentismo no fórum 1500chan, especificamente na subcategoria “armas e militaria”, coletamos mensagens do período de 27 de março de 2021 a 20 de julho de 2023, somando 149 comentários. Utilizamos uma abordagem de métodos mistos, combinando técnicas qualitativas e quantitativas, para aprofundar o entendimento sobre a presença da extrema direita neste fórum. A análise foi baseada no conceito de “lurkers” proposto por Sun et al. (2014), observadores não-participantes em comunidades online.
Os resultados do estudo indicam que as mensagens no 1500chan sobre posse de armas se dividem em quatro categorias: metacomunicação, detalhes sobre o processo de aquisição, discussões do estatuto armamentista e memes. O post de origem, datado de 25 de maio de 2021, fornece um tutorial sobre como legalmente adquirir uma arma no Brasil pela Polícia Federal. A data sugere que o autor esperou pela implementação dos decretos armamentistas de Bolsonaro, que entraram em vigor em abril de 2021. O post detalha documentos necessários, custos, etapas do processo e requisitos para aquisição de armas, incluindo a idade mínima e a necessidade de certidões negativas de antecedentes criminais.
Para a interpretação do material, foi adotada a análise temática de Neuendorf (2018). Identificamos quatro variáveis temáticas principais:
METACOMUNICAÇÃO: Refere-se à comunicação que vai além do conteúdo literal, incluindo contextos, intenções e nuances da mensagem. A categoria “metacomunicação” engloba mensagens sobre a gestão do tópico. Eram esforços para manter o tópico visível e evitar sua exclusão. Usuários postavam palavras como “bump”, um anagrama para “Bring Up My Post” usado em imageboards, e “pinnado”, adaptado de “pin” (alfinete em inglês), referindo-se a tópicos fixados. Essas metamensagens constituíram quase um terço do total, indicando o desejo de manter o tópico relevante. Algumas dessas mensagens enfatizavam a qualidade e a utilidade do post original para a aquisição futura de armas.
MENSAGENS SOBRE O PROCESSO DE AQUISIÇÃO DE ARMAS: Engloba discussões sobre a obtenção legal e ilegal de armas. As mensagens foram subdivididas em dúvidas, respostas, relatos e dicas. Nelas se discute o processo de aquisição de armas em imageboards, onde mensagens sobre dúvidas, respostas, relatos e dicas são comuns. As dúvidas frequentemente se concentram em tipos de armas, melhores opções e lojas que vendem para o Brasil. Há também inquietações sobre o teste psicológico. Gyalfason e colegas (2021) apontam traços de sadismo, maquiavelismo e psicopatia nos usuários de imageboards, refletidos em mensagens que se referem a violência e comportamentos extremos. Mensagens dão dicas sobre contornar requisitos para posse, como operar como Pessoa Jurídica ou usar links para psicólogos credenciados. A discussão também aborda a diferença entre posse de armas e tornar-se um Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador (CAC). A ideologia armamentista é citada, com referências a SANTOS (2012). Relatos indicam que adquirir armas pode custar entre R$4.300 e R$8.000, sugerindo que os indivíduos que iniciam o processo têm poder econômico. Estudos indicam que aqueles com maior renda são mais propensos a possuir armas (DATAFOLHA, 2019; KEINERT, 2006).
DISCUSSÕES RELACIONADAS AO ESTATUTO ARMAMENTISTA: Engloba debates sobre as normas de posse e porte de armas no Brasil, bem como opiniões políticas relacionadas. As mensagens criticam a burocracia, fazem apologia à posse e possuem viés político. Usuários expressam frustração com os custos e a burocracia, sugerindo soluções como comprar armas de países vizinhos ou usar plataformas como o Facebook. Notavelmente, a associação entre violência e armas é desconsiderada, com a posse de armas sendo vista como uma forma de virilidade e proteção. Courtine (2013, 2020) e Norris e Inglehart (2019) discutem a crise da virilidade, conectando-a à masculinidade e à resistência masculina à diminuição do status social. SANTOS (2012) também destaca a arma como símbolo de poder. Os discursos nos imageboards refletem um padrão de virilidade que inferioriza minorias, incluindo mulheres frequentemente objetificadas e a comunidade LGBTQIA+ menosprezada (DINIZ, 2021).
MEMES: Análise dos memes compartilhados, que são unidades culturais que se disseminam na internet e, neste contexto, relacionam-se com a visão da extrema-direita no 1500chan.
Memes na postagem sobre processo de posse de armas. Fonte: 1500chan.
Empoli (2020) destaca que a extrema direita usou ressentimentos de usuários desses fóruns para fortalecer suas pautas digitais. A análise mostra memes defendendo a posse de armas, com referências à extrema direita. Um destes memes apresenta o personagem Pepe, associado à extrema direita por expressar idealismo com ironia. Outro meme mostra o lema “Molon Labe”, ligado ao apoio às armas nos EUA e a Donald Trump. Há também um meme de Bolsonaro, que realça o pensamento conspiracionista e o retrata como opositor ao “politicamente correto” no Brasil.
Essa breve análise conclui que tais fóruns, com sua cultura radical, representam um desafio à regulamentação e podem incitar extremismo e violência. Ações urgentes, como monitoramento e educação digital, são recomendadas.
Referências:
BERNSTEIN, M., MONROY-HERNÁNDEZ, A., HARRY, D., ANDRÉ, P. A., PANOVICH, K., & VARGAS, G. (2011). 4chan and /b/: An Analysis of Anonymity and Ephemerality in a Large Online Community. Proceedings of the Fifth International Conference on Weblogs and Social Media, Barcelona, Catalonia, Spain, July 17-21, 2011.
BOTÃO, A. C. R., SOUZA, J. A. T., & RIBEIRO, M. da S. (2019). O Massacre de Suzano e a Cobertura Jornalística Nacional: uma Análise Baseada na Teoria da Espiral do Silêncio. In Anais do XX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul, Porto Alegre.
COLEMAN, G. (2012). Phreaks, hackers, and trolls: the politics of transgression and spectacle. In M. Mandiberg (Ed.), The Social Media Reader. NYU Press.
COURTINE, J. J. (2013). Impossível virilidade. In: A. Corbin, J. Courtine, & G. Vigarello (Orgs.), História da virilidade: a virilidade em crise? Séculos XX-XXI. Vozes.
DATAFOLHA. (2019). Pacote anticrime. Instituto de Pesquisa Datafolha. Opinião Pública, dossiês. São Paulo. [Disponível em: http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2019/04/11/3100581ecc8a17a619af6189cd665777pac.pdf
EMPOLI, G. da. (2019). Os engenheiros do Caos: como as Fake News, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. Vestígio.
GUSHIKEN, Y., & HIRATA, T. (2014). Processos de consumo cultural e midiático: imagem dos ‘Otakus’, do Japão ao mundo. Intercom, Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, 37(2).
KEINERT, Ruben Cesar. Valores e significados atribuídos às armas de fogo por cidadãos proprietários e por detentores do porte de armas. Coleção: Concurso Nacional de Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública e Justiça Criminal. 2006. Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Segurança Pública.
NAGLE, A. (2017). Kill All Normies: Online Culture Wars from 4chan and Tumblr to Trump and The Alt-Right. Zero Books.
NEUENDORF, Kimberly. (2018). Content analysis and thematic analysis. 10.4324/9781315517971-21.
NORRIS, P., & INGLEHART, R. (2019). Cultural Backlash: Trump, Brexit and Authoritarian Populism. Cambridge University Press.
PEREIRA, F. J. X. (2014). A produção de sentido nas redes sociais efêmeras e anônimas: o 4chan e a sua lógica de funcionamento. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Juiz de Fora.
PHILLIPS, W. (2015). This is why I can’t have nice things. MIT Press.
PRIMAVERA DE FILIPPI, M., MANNAN, M., & REIJERS, W. (2022). The alegality of blockchain technology. Policy and Society, 41(3).
SANTOS, R. (2012). “Cidadãos de bem” com armas: Representações sexuadas de violência armada, (in)segurança e legítima defesa no Brasil. Revista Crítica de Ciências Sociais, 96.
SUN, N et al. (2014). Understanding lurkers in online communities: A literature review. Institute of Human Factors and Ergonomics, Department of Industrial Engineering, Tsinghua University, Beijing 100084, China.
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